sábado, 11 de dezembro de 2010

M,

Descobri que cada um de nós é um pedaço incompleto
de uma peça complexa que não se pode montar.
Cada dia mostra um quebra-cabeças cuja figura não se conhece.
Só sei do vazio, do seco.
A chuva está chegando, mas ela pode não conseguir me alcançar.
Talvez porque eu voe alto demais.


Ah, meu bem, você pode achar que minhas palavras não têm sentido. Mas elas têm sentido que você está longe demais quando não deveria estar. Chegue, responda, toque a campainha. Prove que você existe. Li uma frase que poderia perfeitamente sair das minhas linhas: "Hoje eu diria qualquer coisa se você telefonasse."


Sua, S.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

M,

Ontem sonhei com uma menina que lia um livro.

Não sei exatamente onde estávamos, mas era um local público. E havia um banco. Ela do meu lado, feições que não me ocorrem com exatidão, olhar fixo. Só consigo lembrar desse olhar, do livro e da roupa preta e rasgada. Lembro que parou de ler repentinamente e olhou bem dentro dos meus olhos: deve ser por isso que a dureza do olhar não saiu da minha mente junto com o resto de seu rosto. Dava pra ver que ela carregava o mundo nas costas. E sofria.

Não me lembro do momento em que ela começou a falar. Mas começou. E o início deu vazão a uma torrente ininterrupta de palavras que machucavam o ouvido de quem estava perto. A partir desse momento, já não lembro mais dela, nem sequer da voz. Só as palavras me chegam. O livro foi mantido aberto e a explosão parecia transcender o âmbito das palavras: tudo era luz e brilhava, numa erupção de dores coloridas.


...e daí se eu tô aqui e tenho esse sorriso amarelo? Eu sorrio, não sorrio? Então pronto, já cumpri a minha parte do roteiro teatralizado dessa rotina mesquinha. Se cada um tem que esconder o melhor e o pior de si pra orbitar num cenário de mediocridade neutra, ok, me chamem, participo numa boa e ainda saio fazendo piada disso tudo. Porque é isso que é, não é mesmo? Uma piada, gatinha, uma piada...


Meu ímpeto foi de rir. Riso de um sonho que acredita ser real. Riso tão colorido quanto as palavras agressivamente furta-cor que ela derramava aos meus pés. Não me contive: um risinho tímido fez com que ela me olhasse ainda mais fixamente.


Tá rindo, meu bem? É, tá rindo porque não é contigo... Mas tem que rir mesmo, sabia. Deixa eu te contar uma coisa engraçada, mas você tem que me prometer que vai rir junto comigo. Seguinte, moça, todos os caras de quem eu já gostei na vida, todos, sem exceção nenhuma, fuderam comigo. É, de todas as maneiras, menos na sexual, é claro. Não disse que era pra rir? É, moça, chega a ser engraçado, sabia. Eles somem, dão gelo, mudam contigo, viram gays, abusam do álcool, aparecem com outra, te deixam esperando uma eternidade, duvidam da tua palavra, usam drogas, fazem você parecer uma idiota, mudam de cidade, se tornam violentos... E por aí vai. Trajetória conhecida, rua sem saída. Chega um ponto que ou tu desencana ou tu aprende a ser escrava dos teus próprios fracassos.


Nesse momento, eu já tinha parado de rir. O vocabulário era pesado demais, não estava acostumada àquelas palavras cruas/cruéis, a amargura contida ali me deprimia. Levantei-me do banco e saí sem olhar para trás. Ela ficou sentada, impassível. Mesmo assim (como os sonhos são loucos!), quando já estava longe, a voz dela continuava me acompanhando, como se ressoasse dentro da minha cabeça.


...eu nunca pedi muita coisa não, minha filha. Nunca. Nunca curti exibicionismo escrachado em relacionamento nenhum, pra mim o negócio tem que ser a dois. Olho no olho, vísceras, suor, falta de ar. Isso só quem sente é quem vive. Os outros só servem pra ficar babando historinha de quem precisa levantar a auto-estima quando o amor próprio não é suficiente. Não entendo como é que uma pessoa pode querer ser dona de outra. Ninguém é objeto, se não dá nem pra você mesma controlar o que sente, queridinha, imagina então, não dá pra ter alguém controlando o que tu pensa, o que tu diz, o que tu faz, com quem tu anda, que roupa tu veste. Na boa, não sou robô. Prova disso é que já tive que trocar travesseiro um monte de vezes porque é neles que eu choro toda noite e nem objeto tem obrigação de me agüentar pra sempre, mesmo que seja só um pacote de plumas. A umidade destrói, lágrima que é lágrima queima antes de jorrar. É por essas e outras que eu fico aqui nesse banco doente dessa cidade doente falando essas coisas doentes pra gente doente como você. Como eu.


Cada palavra que chegava aos meus ouvidos, vindas sabe-se lá de onde, fazia com que eu pensasse em como sou hipócrita. Aqui, parada, nesse meu vestido branco engomadinho de moça “de família”. O problema dos travesseiros eu também tenho, só me falta coragem suficiente de encarar a ferida de frente, sem me importar com opiniões alheias. E agora? Será que isso foi um sonho mesmo?
Só sei de uma coisa: acordei pensando em você.



De sua eterna "branca sombra pálida", S.

sábado, 30 de outubro de 2010

M,

Anoitece enquanto escrevo. Não costumo fazer isso, mas hoje, especialmente hoje, resolvi abrir todas as janelas. Tirar poeira dos objetos e organizá-los de modo que a harmonia se estabeleça. É a hora preferida do meu dia, sabe, essa tarde preguiçosa que se despede sem querer ir embora. Sempre gosto de andar pela rua nesse horário, ver as pessoas passando e a vida mudando enquanto a noite cai. A luz me favorece? Talvez. Pensando melhor, o que me atrai de verdade é a sombra que acompanha essa luz. Posso me esconder nela. E observar.

Arrumei o quarto, como disse. Andando descalça num silêncio que me envolve, só pude pensar que prezei pela organização dos meus objetos porque fui incapaz de pôr ordem aos meus pensamentos quando foi necessário. É impossível não pensar que passei da hora. O final feliz passou por mim. Movimentando-se assim, bem aqui, ao meu lado, pegou minha mão enquanto passava. Soltou-a devagar. Acenou. Sorriu. Um sorriso de adeus. E eu aqui, estática, de pés descalços. Pensar nisso dói, ferida recente, parte final de um bolero. O que se pode fazer depois que o fim já passou? E o Para Sempre, que era para ter sido e não foi? Acho que não quis ter despedidas, as atitudes e as palavras nunca conseguem chegar sequer perto do que existe/existiu no âmago. Talvez o problema tenha sido esse. Silêncio. Ninguém nunca falou nada e o ponteiro do tempo continua sempre. Impetuosamente.

Talvez seja hora de começar de novo. Renovar o ciclo. O desejo de harmonia e de organização certamente veio daí. Você desejaria me ver feliz, eu sei que desejaria. Vivi um filme do começo ao fim, sabe. Talvez seja hora de compor um novo roteiro, algo que escape à melancolia dos créditos finais que ainda estão passando. E sei que preciso fazer isso antes que mais tardes como esta caiam. Só não sei se vou conseguir me importar tanto assim novamente. Mas posso desejar que a luz me ajude a ser percebida, que a sombra me ajude a observar...


Com todo o carinho possível de um fim de tarde,
S.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

M,

Escrevo como quem sangra. Acho que pressenti o turbilhão que me acomete agora, uma vez que só consegui dormir na madrugada de ontem depois de ler muito, literatura amarga, triste, sôfrega... Hoje fiz questão de comprar um livro novo numa atitude repentina, sair da livraria à tardinha e ver a noite cair enquanto folheava meu novo companheiro. Acabei de chegar à conclusão de que conquistei uma companhia mais cedo para a solidão que enfrentaria mais tarde. Que bom que pude pensar nisso, que pude pressentir. Até nisso estou ficando melhor: prevejo com perfeição a iminência do vazio. Você adquire a prática com o tempo e a sucessão de eventos similares, não é mesmo? Preparo a sala, o quarto, o corredor, a alma. Limpo os trincos das portas, deixo-os brilhantes. Se é para chegar, que o ambiente seja convidativo. Pois que chegue. Fique o tempo que lhe convier. Tenho até flores. Tenho páginas, poesia, pedestais, purpurina, só não tenho um plural. Comigo é singular, sinfonia, solidez. Um tango de Piazzolla que rasga o chão, a voz rasgada de Maysa em uma canção qualquer que escapa pelas janelas trancadas que aprisionam as estrelas lá fora. Pena que o álcool não me apetece, do contrário, sim, caberia perfeitamente aqui. Quem sabe. Das entrelinhas de outrora, apenas meu silêncio. Quando se dá tudo de si e a reciprocidade (lembra da minha última carta?) é nula, a única atitude possível é soprar o castelo de cartas. Sopro forte, decidido, a plenos pulmões. Se é para destruir, que se destrua direito. A imagem que me vem à cabeça: papéis voando. Milhares, incontáveis, todos brancos. Brancos de indiferença.


S.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

M,

Hoje acordei com uma pergunta dando voltas ao redor de mim. Ela sumiu em determinados momentos do meu dia, reapareceu em outros, morreu e ressuscitou de forma repentina, abrupta, quase agressiva. Eu estava perdida, envolvida por inúmeros papéis e livros e cheiros mofados de páginas velhas e aromas deliciosos de páginas novas e pensamentos que atrapalhavam minha tão necessária concentração. Confesso que ainda estou perdida. Ah, meu bem, quem dera se as coisas fossem límpidas como a gente gostaria que elas fossem. Descomplicação, clareza, objetividade, simplicidade. Não é essa a situação ideal? Você vive aquilo. Pronto. Por mais que não haja, assim, aquela subjetividade tão gostosa dos assuntos profundos e das sentimentalidades, há clareza. Um lago raso pode ser suficiente para matar a sede de vez em quando, quem sabe. Mas, nele, só é possível lavar os pés. No máximo, as mãos. É, eu lavo minhas mãos. Nada de mergulhos e cachoeiras e corpos molhados e rios caudalosos e alma lavada e banhos maravilhosos. Há um limite para a profundidade, assim como há limite para o prazer, assim como há limite para a subjetividade. Porque, se não houvesse limite, o medo seria infinitamente maior. Não haveria fundo do poço. O infinito dói, a possibilidade do “sempre” machuca. É por isso que ele sempre acaba. Melhor mesmo é que haja confiança e cumplicidade, mesmo que o lago seja raso. E que se mate a sede. Sempre. Mesmo em pequenos goles, mas que seja mútuo. Reciprocidade é a lei, mesmo que seja ínfimo o objeto da divisão. Que se tenha consciência dessa pequenez. Será que você me entenderia? Lembra que eu te falei que carregava uma pergunta comigo? E agora? Qual era a pergunta mesmo?


Sua,
S.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

M,

Preciso te dizer de algo que não saiu de mim, mas que me encantou exatamente por esse motivo:

"O que ele realmente e profundamente era, não era visível nem perceptível. O que ele era existia assim como uma praia na Ásia que neste mesmo momento em que estais aqui, a praia está lá. Ele mesmo, apesar de não poder se negar, no entanto não se provava nem a si nem aos outros. O que ele realmente era não era passível de prova. O único modo de saberem de sua vida mais real e mais profunda seria acreditar: por um ato de fé admitir essa coisa de que jamais provavelmente teriam a certeza, senão crendo."

Clarice acabou de me dizer isso em suas páginas. Achei lindo, de uma delicadeza e de uma sensibilidade ímpares, como sempre. Tive vontade de encarar novamente uma página em branco e vir correndo te contar, antes que o momento virasse nada. Lembrei-me instintivamente de você, como quando ouço as músicas que costumávamos compartilhar ou quando leio os poemas de que você mais gostava (recitar Pessoa no meio da rua, gritando a plenos pulmões e de braços abertos: loucuras que fazíamos, sons que provavam que éramos doidos-alucinados-maravilhosos). Talvez nessa descrição Clariceana de um personagem - que me trouxe um sorriso discreto por motivos óbvios - eu tenha encontrado um refúgio pela angústia de não conseguir descrever você. Juntei isso à necessidade de dizer essas palavras tão lindas de "praia na Ásia" e afins para alguém (não se sinta sem valor, mas poderia ser qualquer pessoa, eu realmente só precisava dizer) e aqui estou. Faminta por preencher uma página em branco que provavelmente só vai contribuir ainda mais para essa minha angústia-propulsora-de-tudo-nessa-vida-fatigada. Satisfeita e radiante, toda plena por ter realizado um desejo. Um querer tão pouco, esse. Dizer e ponto. Até ínfimo, bobo, eu diria. Sem exigências: nem mesmo a de compreensão. Acho que não consigo te descrever além de poucas palavras, vou treinando aos poucos. Você é bem assim: existe e ponto. Períodos curtos, sem muitas vírgulas. Eu sou toda entrelinhas, sinuosidades, curvas, pele, olhos, boca, reticências...


S.




Ps - Ao terminar de ler,
vou imaginar em ti um sorriso igual ao que estampa o meu rosto agora.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

M.,

Descobri que amo ganhar flores. Não sei se isso faz parte de um sentimento de certa forma “maternal” que eu possa ter ou se é puro egoísmo. A verdade é que ter algo que te faça querer cuidar e que sustente a idéia de preocupar-se por um motivo importante é uma ótima maneira de desviar das horas que insistem em não querer passar. Você tá longe, no tempo ou no espaço, e pensa: Preciso chegar logo pra cuidar das flores. O perfume e a beleza que vêm em troca acabam nem sendo o motivo primordial. Cuida-se pelo gostar de cuidar. Observa-se pelo gostar de observar. Precisa-se de um objetivo para navegar, de um norte que te dê alívio. Egoísmo ou altruísmo? Você acorda e vê aquele traço de vida em meio às paredes duras e aos aparatos tecnológicos e pensa: Isso é tão mais importante.

E aí a importância fenece. Murcha, apesar de todos os cuidados. Espaços vazios, tempo vão, cores desbotadas. O cinza dos fios e o preto das grades acabam vencendo o verde, o rosa, o vermelho. Porque o preto vigora e as outras cores despedem-se de nós com o tempo. Qual seria mais digno da eternidade? Porque, sim, a vida fica na memória. E a gente tende a enfeitar a realidade com todas essas cores. As flores murcham, morrem. Mas são lindas porque um dia existiram.

Um dia cheio de flores pra você.

Beijos,
S.



Ps - Talvez algum dia eu receba flores suas.
Cartões e palavras sequer serão necessários: Saberei que vieram de ti.

domingo, 10 de outubro de 2010

M.,

Andei fugindo das palavras. Sem saber exatamente o motivo, acabava tendo algumas idéias e permitindo que elas escapassem de mim como quem liberta um rebanho inteiro só pelo prazer de ver os animais correndo. Talvez haja certa satisfação em ver que os pensamentos continuam chegando e que eles podem ser interessantes, mesmo que a gente os trate como sendo descartáveis. E quem não é? A verdade, senhora crudelíssima, é que a gente nunca é pleno de tudo. Essa angústia, que vem da mesma plenitude falha e que é propulsora do bem e do mal que nos acomete, é uma das principais responsáveis pelo girar da roda-viva cotidiana. Esta primeira carta, que chega assim sem explicação e sem qualquer anunciação prévia, merece uma razão de ser, muito embora eu não esteja muito propensa a dá-la. Talvez a razão de ser esteja na própria existência: ela é porque é, porque quis ser. De poucas palavras, de muitas intenções. De quem honestamente cansou-se de construir e desconstruir realidades como quem troca de roupa. De quem implora silenciosamente para que um acontecimento qualquer ajude a construir algo que não seja meramente efêmero. Algo que dure o bastante para ser passível de um lamento quando for embora. Imagine apenas que a angústia tornou a escrita possível. Uma angústia que não é necessariamente má: traduza como inquietação, inspiração, verborragia ou qualquer termo que se adeque à sua interpretação de mim. Talvez essa interpretação sofra mudanças ou acabe desistindo de concretizar-se de acordo com a chegada de novas palavras, o tempo dirá. Por enquanto, deixo-te com o tempo e com a certeza de ter um resto de noite de quem olha pela janela esperando sentir o cheiro de terra molhada, o cheiro trazido pela chuva que lavará sonhos e cansaços.

Beijos,
S.