terça-feira, 26 de julho de 2011

M,

Algumas coisas ficam mais difíceis durante a madrugada. Talvez devido ao exagerado silêncio dos objetos ou àquela luz pálida da lua, os passos dados em horas altas parecem vir de uma cena em câmera-lenta. O tempo escapa das mãos e escorre por ampulhetas disformes. Enquanto reflexões fluem olhando o trânsito de uma janela e estabelecendo uma calmaria quase meditativa, existe um redemoinho dentro de cada um de nós que ataca com mais violência em tempos silenciosos. Humanos, tigres que somos, fingimos estar no olho do furacão. Falsamente inabaláveis. Falei em tigres porque ninguém pode ser tão nobre quanto um felino ferido e acuado. Escrevo, agora, movida por um estágio de percepção que fica mais aguçado durante a madrugada, talvez porque os outros sentidos – aqueles que nos fazem responder “tudo bem” quando nos perguntam “como vai você?” – fiquem guardados no dia que passou. Se a madrugada é cruel por tornar isso tudo possível, é justamente essa pretensa crueldade que faz dela tão bonita. Ela revigora memórias e burla insensibilidades. De tanto conhecer você, sei o que deve estar pensando agora. E concordo: eu também queria que fosse fácil.


Sua, S.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

M,

Havia luzes. E prédios. E placas. Semáforos verdes e vermelhos aceleravam e congelavam o que estava ao meu redor. Minha cabeça, confusa, estava próxima à janela numa busca incessante por qualquer vento que me balançasse os cabelos. Outros carros passavam por nós, ônibus de trabalhadores cansados e solitários, olhares perdidos em janelinhas (como o meu), luzes fosforescentes no topo de edifícios altos. Todos insones, como eu, como você. Já passava de meia-noite e eu tinha a música comigo. Tinha os fones, passaportes só de ida para um lugar onde a visão, o olfato ou o tato são supérfluos: aquele era o meu mundo. Sabendo disso, de olhos fechados deixei-me despentear. Imagens ruins e boas ziguezagueavam, mas o sorriso ficou perdido no caminho. A noção de tempo me escapava, como em outras ocasiões melhores, e a volta para casa parecia bem mais longa do que deveria ser. Tentava desenhar estas palavras no ar, gravá-las ali. Eu, que não tinha mais forças, ainda tentava lembrar-me deste simples texto, que nem sequer fora escrito até então. Tal dever requer um esforço que parece ter proporções sobre-humanas no momento. Uma musculatura cansada tentava buscar repouso na própria respiração. Inspira, fundo, solta. Devagar. Abri os olhos e as luzes me cegaram, tornei a fechá-los como quem foge do inescapável. Acordes me embalavam no escuro, uma dança suave me fez viajar. O tempo fugiu novamente. Minha priminha, uma pequena flor de cabelos negros e lisos, estava deitada no meu colo. Enquanto mexia nos cabelos dela, percebi uma mudança no comportamento: ela apertava minhas mãos, como quem me chama. Olhei para ela enquanto abaixava o volume da música e

- Você tá chorando?

- Não, florzinha. Tô não. (uma lágrima escapa aqui)

Tentei sorrir, não sei se consegui. Eu e minha dificuldade de admitir. Ah, a sensibilidade das crianças. Enquanto eu fingia que a enganava, ela estava muito mais consciente que eu e me deu um beijinho na mão. Fechei os olhos e de repente me vi criança, deitada no banco de trás de um carro, numa viagem cujo destino não interessa: só as sensações são lembradas. O céu azul com nuvens correndo ao fundo, meu olhar curioso totalmente voltado para cima e para fora, as árvores e os postes ameaçando cair em cima de mim a qualquer momento, sempre que o carro fazia uma curva. Lembro de ter lido isso em um livro, a descrição exata dessa mesma sensação, poderia ter sido escrito para mim. Ou por mim. Mas ali, fora da memória, não havia nuvens e eu já não era mais tão pequena a ponto de caber perfeitamente esticada no banco de trás de um carro. Continuei deixando-me levar pela fluência do que me faltava, viajando por cenas que não mais consigo lembrar ou descrever. Caí no sono.

Mãozinhas infantis me despertavam, enquanto a consciência vinha me dizer que já não havia música. O passaporte perdeu a validade e os fones agora eram silêncio. Havia chegado em casa. Cadeados, portões, interruptores. Agora estas palavras me conduzem. A noite me embala, como quem fecha delicadamente os olhos de um rosto cansado, me dá um beijo e me põe para dormir.


Sua, S.