domingo, 16 de dezembro de 2012

M,


Tem não que é mais indeciso que talvez. A gente tem que dizer sim pro não (ei, não, é você sim!), pra ver se ele assume a própria existência.

Mas é muito difícil.

Por mais que se saiba da impossibilidade das coisas, aquele gostar gratuitoinatoquenãopedenadaemtroca cisma em marcar território. Enxergar alguma cor no mundo é mais importante que receber aconchego, às vezes. É uma mínima-mágica-mentirosa que faz a gente se sentir bem, pelo menos enquanto olha pro espelho e vê que os braços vazios cabem naquele abraço.

Porque tem sorriso que desmonta o não, sabe?

E a gente vai dizendo não enquanto acena, só pra gente, que sim.



S.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

M,

O que é liberdade?

Entendo, desejo e repudio esse ser enigmático. Tudo ao mesmo tempo. Será que liberdade é o horizonte? É o céu? É um salto no escuro? Fico pensando no que a gente costuma encarar como prisão. Uma gaiola aberta é mais bonita que uma gaiola com um passarinho dentro. Mas os espaços de fora e de dentro só são diferentes por um minúsculo detalhe: alguns centímetros de grades. E o que vale mais? A segurança ou o vento batendo no rosto? Os problemas ali de dentro ou as imensas possibilidades contrárias de sorrir ou se machucar lá fora?

O problema é o medo. Medo de entrar na gaiola e nunca mais sair, medo de não entrar na gaiola e ela nunca mais se abrir pra você. Entre o aberto e o fechado, entre o dito e o não dito, a gente fica parado em frente à porta aberta, sem querer dar um passo pra frente nem virar as costas. Inércia. As gentes passarinhando em cima do muro, que, por sinal, foi criado por nós mesmos pra evitar uma invasão qualquer que nem sabemos se virá um dia. Ocupando as reticências com uma fileirinha de “se” que vai além do que a vista alcança, o tempo vai sendo gasto. E as asas também.

Acho que a liberdade aprisiona muitas vezes. O mundo é gigante, mas existe uma gaiola muito maior encarcerando tudo na enorme prisão de nós mesmos. Acho que não é preciso ter chaves, cadeados, correntes e barreiras. Não pro que se faz necessário voar. Meu conceito? Liberdade é mostrar a si mesmo sem ter medo de cair. Porque as asas estão gastas, mas elas existem.

Grades amedrontam porque tiram a possibilidade de tudo o mais. Todo o vir a ser é imensamente atrativo. Ao mesmo tempo, a queda é mais provável em ambientes desconhecidos. O trauma de cada tropeço vai enclausurando a gente dentro de si. E os passos pra trás deixam o horizonte ainda mais inatingível.

Por outro lado, até a maior das vontades de conhecer os lugares mais distantes do mundo é acompanhada pela saudade de casa a cada passo dado. Por mais que alguém se declare livre e amante dos ventos sem rumo, a terra acaba sendo necessária. Humanos olham janelas pensando no quão distante está o abraço desejado, a voz conhecida, o cheiro familiar. Pássaros pousam. Simples: eles não devem explicações.

A gaiola não precisa se fechar. O céu não precisa sair do alcance. Pássaro livre é aquele que não se priva da capacidade de voar e sabe o quanto é bom quando a terra chega. Felicidade é ter e usar de livre escolha. É alcançar essa terra sabendo que o céu está logo ali, palpável. E que as asas não estão gastas por silêncios. Não é à toa que os pássaros cantam.

Dia desses, ouvi de uma amiga: liberdade é quando te deixam voar dentro de uma gaiola maior que a sua original.


Guardo lembranças suas, aonde quer que eu voe. S.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

M,

É como permanecer na beira da praia esperando o próximo navio que vai passar por você sem aportar.

S.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

M,

Sabe quando alguma coisa segura teus pés? Quando, pela paranoia ou pela gravidade, você não consegue voar? Por mais que todas as suas vontades sejam plenamente compatíveis com todo o planejamento minimamente acertado dentro da sua cabeça, você não consegue mover as peças. Não é por cautela, por faltas ou excessos de sentimentalidades. Tá mais pr’aquele medinho de acontecer tudo de novo. Por mais que os fatos – tão terríveis! – que já morreram há séculos não justifiquem a relutância em viver coisas novas. O medo de passar por idiota, de novo, continua gigantesco. Retiro o silêncio do meu quarto como quem pinça um elemento raro, cercado por amenidades quaisquer. Alguns acordes delicados entram, dizendo “Come slowly to me, I’ve been waiting patient, patiently...” Ainda acho que as coisas mais difíceis de dizer são as que mais valem a pena serem ditas. Hoje eu disse. Pra mim, aqui, entre quatro paredes. E tô dizendo pra você em uma carta qualquer, que prefiro ler quando tiver a chance de te ver se aproximando. Algumas mensagens funcionam melhor se transportadas pela voz. Além disso, provavelmente vou precisar de um abraço, por isso vá se preparando. Se é que você quer se aproximar. Se não, guardo as palavras pra mim e recito sempre que a música não me satisfizer. E, por favor, não conte a ninguém. Ainda morro de medo de sentir, embora sonhe com isso sempre.

No mais, vou ficar com a janela aberta, pra que algumas estrelas embalem meu sono hoje.
É o que me resta.

Sua, S.

sábado, 21 de julho de 2012

M,

Me disseram dia desses que eu devia te deixar pra lá e não te escrever mais. De que adianta oferecer tantas palavras a quem só se faz ausência?

O conselho é válido. Mas o detalhe é que eu tô te escrevendo pra contar.

Só não espere mais tantas cartas, não agora pelo menos.
Entenda, é uma pequena questão de felicidade: a gente deve gostar de quem tá perto da gente.

Beijos, S.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

M,

A vida é um negócio super legal e acho que as pessoas são o céu e o inferno delas mesmas além de serem o céu e o inferno dos outros também quer dizer principalmente o inferno porque muita gente prefere silenciar a falar coisas boas mas isso não interessa tanto tô escrevendo tudo sem vírgula porque penso que se parar não vou saber mais o que dizer e tenho tanta coisa pra dizer que acabo nunca dizendo nada e fica só o papel em branco que eu resolvi encher de tudo o que me deixa vazia hoje e nos dias cheios de vão que insistem em passar tão devagar porque em um dia você tá cheia de brilho e sorrisos e coisas lindas que alguém te dá de presente e no dia seguinte horas depois parecem até segundos tudo plim desaparece mas no meio disso tudo fica aquela coisa boa de saber que tá muito mais madura e que não vai se afetar por nenhuma tentativa alheia de te machucar porque foram anos construindo uma estrutura mais resistente que a porcaria de uma rocha que recebe pancadas e mais pancadas de ondas que insistem em ser lindas mas que doem pra caramba mas foda-se você continua ali desejando aquela linha inalcançável que tá lá na frente de todas essas ondas que te batem sem perguntar se você tá bem porque sim claro você tá bem você sempre tá bem não importa o que aconteça porque você aprendeu a ficar bem já que isso é o mínimo que você pode fazer por si mesma e o máximo que você pode fazer pelos outros porque ninguém é obrigado a aturar gente que fica remoendo problemas o tempo inteiro e você sabe disso tanto é que ninguém costuma te ver reclamando de nada porque você cura todas essas coisas ficando sentada no chão do banheiro se perguntando por que eu fiz isso por que por que enquanto a água escorre pelo ralo e leva qualquer coisa que você precise desabafar aí você sai linda e renovada e veste a própria capa de pretensa invencibilidade e sai por aí matando leões o dia inteiro só que nem sempre o peso é pelo que você fez na verdade quase nunca porque você sempre se mantém na defensiva por pura questão de proteção pessoal e o que te faz desabar nas pouquíssimas vezes em que você se deixa vencer são coisas que os outros fizeram contigo aí você fica sentada no chão do banheiro se perguntando por que fizeram isso comigo por que por que meu deus eu não fiz nada de errado ninguém é obrigado a tolerar isso e não é agora depois de tanta merda já ter acontecido nos últimos anos que eu vou me deixar abalar por qualquer coisinha e não vou mesmo prefiro sair por aí sorrindo sempre mesmo pras pessoas que insistem em me dar tapas em ocasiões sucessivas porque olha me disseram uma vez que a gente tem que fazer tudo o que deixa a gente feliz e eu levo isso muito a sério e quando saio do banho toda renovada fico pensando em mil lembranças incríveis acumuladas e quero de volta todo aquele pôr-do-sol aquela festa aquele violão aquelas estrelas aquela praça aquele beijo aqueles risos aquele caminhar juntinho na frente de quem quer que fosse porque isso sim é delicado e é gentil e faz a gente sorrir mesmo depois de muitos meses e meu horizonte tá na forma de qualquer demonstração que me diga ei gosto de você do jeito que você é e pronto não tenho problema nenhum com isso e vem dançar que eu não me importo se você tá tontinha porque sinceramente não vejo graça em nada espalhafatoso prefiro verdades que ficam entre poucos porque as coisas mais bonitas são ditas quando ninguém tá vendo e as melhores piadas são aquelas que são entendidas só por duas pessoas

 (continua indefinidamente)

domingo, 24 de junho de 2012

M,

Hoje, do nada, me perguntaram por que sou tão descrente das pessoas. Coincidência. Mas já vinha pensando nisso há um tempo, analisando memórias e me fazendo questionamentos. E aí a garganta se faz amarga, aparece um ranço, acabo engolindo seco e vou seguindo. Sem demonstrar a mínima alteração na face, obviamente, porque alterações não existem mais e tampouco se justificam. E meus maiores traumas vão fazendo aniversário: um aninho, parabéns! Doze meses de morte e doze meses de vida ao mesmo tempo. É tudo mais do mesmo de qualquer forma. De que adianta se preocupar com o que não se pôde controlar?

Me disseram que maturidade é isso. É não achar que os seus problemas são maiores que os de todo mundo, é jamais bancar o coitado. Pra mim, além disso e da obrigação de responder pelos próprios atos, maturidade é não se surpreender. Mais fácil e mais cômodo encarar as coisas como elas são, o que não significa aceitação plena. Ninguém gosta de ser humilhado, mesmo que a opinião consensual da sua capacidade de perdoar possa dizer o contrário. Somos um bando de fracos, de mentes confusas, de opiniões contraditórias, de atitudes descabidas. Todos nós. Um bando de leões soltos numa arena de falsa segurança sobre a nossa própria identidade. Fingimos percorrer um caminho. E perseguimos o próprio rabo sempre.

Não é isso que caracteriza um ser humano? Talvez. Gosto particularmente da caracterização que prioriza o sentimento, apesar da utopia que ronda essa interpretação. E só acredito nela pelos pequenos indícios que algumas entidades que só podem vir de outro mundo insistem em me dar. Nem tudo é feito de tropeços. Talvez pelo filme compartilhado, por aquele pequeno momento ou pela música dividida se chegue a algum lugar.


Sem vocativos, não mais.
S.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

M,

Ele era tão lindo que tive vontade de roubar uma foto. Não daqueles roubos em que se espreita um descuido para esconder o objeto roubado num bolso qualquer com movimentos sorrateiros. Não. O roubo era em parte um pertence meu, porque tudo só faria sentido se a foto fosse tirada por mim. Sempre fui cabeça dura, eu sei. Te conheço tão bem que já sei o que você vai falar. E não me venha com ciúmes, que sou intolerante a exigências de quem não quis me tomar por completo. Pague o preço pela sua ausência e leia aí quietinho, sem reclamar.

O que eu sei é que era lindo. Nunca falei com ele, parte de mim quer trazer de volta o frio na barriga dos amores platônicos. Não quero saber nome e nunca dei o menor sinal de que ia me aproximar. Só observava, de longe, sempre desejando ter uma câmera à mão. Apesar da distância velada e da minha postura sempre impassível, percebi que ele também me olhava. E me seguia.

Não que essa fosse uma relação entre psicopatas que se procuravam sem se tocar, cuidado com os pensamentos errados. Nos seguíamos como quem segue um pássaro voando, só com o olhar. E todos os poucos encontros duraram milésimos de segundo.

Mas houve encontros. Nunca ouvi a voz dele nem ele ouviu a minha, mas sempre que ele se aproximava e eu fingia ler um livro qualquer, percebia que ele estivera olhando e disfarçava rapidamente. Nos entendemos assim: com breves encontros e olhares furtivos.

Cheguei até a sentar do lado dele uma vez. Éramos dois bonecos de madeira desconcertados, atrapalhados com os próprios movimentos. Saí rápido, com a pressa de quem descobre a própria maturidade (conquistada a duras penas!) substituída pela taquicardia de uma adolescente de 13 anos. No dia seguinte, aconteceu de nos encontrarmos de novo. Dessa vez, por sorte minha, ao invés de um livro eu tinha uma câmera. O clique veio sem planejamento. O resultado veio fora de foco, tremido e pálido. Como as lembranças. Guardei a foto na minha caixinha de recortes temporais não-descritíveis.


Sua (será?), S.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

M,


Terminei a carta anterior falando de precipícios. Pois sonhei que pulava de um. Não lembro do instante exato do impulso, só lembro que pulei. Não medi distâncias, não medi conseqüências, não medi possíveis dores. Fui. Logo eu, de crenças tão medrosas, vi naquele abismo uma possibilidade qualquer de êxtase. Acho que queria o vento nos cabelos, só isso. E resolvi arriscar tudo o mais pelos segundos que nunca seriam primeiros. Inconsequente como criança afoita que não sabe nadar, consciente como velho olhando fotos em preto-e-branco.

Não sei por quanto tempo estive caindo, só consigo lembrar que tremia. Munida de todas as certezas que cabiam a alguém que planeja absolutamente todos os seus atos, fiquei feliz por conquistar algo que fugia totalmente aos meus protocolos. Mas era meu e de mais ninguém. Aquela queda, com todo o frio cortante e a adrenalina do quase vôo, era só minha. Você sabe mais do que ninguém o quanto isso era necessário pra que eu revivesse. E o mundo tinha tantas cores ali, na escuridão dos olhos fechados por um sonho, que qualquer justificativa seria desnecessária.

Alcancei o chão. De repente, como quem descobre o segredo de um cofre, percebi que a minha recompensa era não sentir mais nada. Deve ser esse o enigma dos loucos e suicidas, então. Ainda bem que só precisei de um sonho para descobrir. Só não sei se o mundo perde com a minha insensibilidade, acho até que ele não é digno de sentimentalismos. Não sei se devo guardar um pouco de amor para destinatários falsos, e você há de concordar com essa falsidade. A mágica do ciúme é especialidade sua, quem sou eu para tirar sua razão, meu bem.

Prefiro pular de precipício em precipício, procurando na chuva ou nas luzes algo qualquer que me faça respirar. Impossível é organizar o tempo. Do que já foi e do que não virá mais, não se pode extrair nem uma gotícula de som. Porque o silêncio fala mais. E, de palavras, as páginas em branco estão cheias.  


S.

sábado, 7 de abril de 2012

M,

Bem que você me dizia pra gente nunca esperar nada de nada. Sabe quando você faz uma contagem regressiva pra uma coisa qualquer que você nem sabe o que é? E aí o zero chega e, obviamente, nada acontece? O que surpreende a gente é o impreciso. Em qualquer escala dos números negativos, quando a contagem já parou e você não se preocupa com mais nada, acontece. Pá. Um, dois, vinte, nada, tudo. De bandeja, assim, toma, lida com isso. A gente cambaleia, claro, sempre. Não tem graça se não tropeçar um pouco. Nada deve vir asséptico assim, como bandeja de comida de hospital. O tempero das coisas vem da improbabilidade. E aí o duelo acaba sendo entre os eus de nós mesmos. Entre o que é certo e o que se tem vontade, entre o que é socialmente aceitável e o que passa pelos nossos pensamentos em altas madrugadas.

Não acredito em satisfações que se dão aos outros. Nada justifica o impulso. Nada forçado funciona. Inútil recorrer às chorumelas de águas passadas e planos pro futuro. A gente não sabe se vai morrer amanhã. Posso arrumar as malas e sumir da vida de todo mundo que já conheci até hoje, posso arquitetar a construção de uma identidade diferente de tudo o que me representa. Posso mudar. De opiniões e de atitudes. E será que vou fazer falta? Impossível saber. Nem a gente se conhece direito, como prever a intensidade dos próprios atos em situações inesperadas?

Apesar de tudo, as nossas metas não mudam. O que diferencia o antes do agora é a maneira com que busco essas metas. Mordi a língua. Mas não a consciência. Sei do que conquistei e me sinto segura o suficiente pra abandonar uma série de aflições. Porque a dificuldade virou rotina e isso é bom, porque cada pequeno brilho só aparece quando se faz merecer. Reviro minhas gavetas e me dá vontade de doar todos os penduricalhos que enfeitam minha máscara. Imagino que outras pessoas devam querer usá-los. Só sei do que não me serve mais.

Uma noite dessas, o tempo me encontrou sentada na areia e me deu algumas memórias de presente. Coisas que já estavam perdidas e coisas que mereciam reviver. Vi três estrelas cadentes em poucos minutos, falei três palavras que me vieram à mente. Não eram pedidos. Me acostumei a não pedir mais nada. A resposta já estava na minha frente há muito tempo: o equilíbrio das coisas está na mistura de doçura com intensidade. Se não estou plena dos outros, estou plena de mim. Confio no que me convém e acho que a maior proteção do mundo quem me dá sou eu. Me dôo (de doar, não de doer) como quem pula de um precipício com a certeza de que vai voar. Acho que cresci.


Sua, S.

domingo, 11 de março de 2012

M,

Hoje eu resolvi sair correndo na chuva. Não sei se por loucura ou por tédio, se por raiva ou por aflição, se por amargura ou por cansaço. Fui aprendendo que a gente deve parar de pensar um pouco, por virtude do não enlouquecer. Concluí que, não enlouquecendo, estamos autorizados a cometer mais loucuras. Saí, trôpega e louca e sozinha na chuva. Porque precisava me manter sã subjugando a alucinação. As palavras bonitas que colei no espelho para ler quando acordasse estão borradas agora e todo o resto do mundo me parece mais nítido. Seco, palpável, real e nítido. Não que as minhas certezas tenham mudado: calma, meu querido, ainda sou a mesma e sempre serei. Ainda consigo encontrar beleza nas coisas e nas pessoas, só passei a desconfiar delas. Não conservo mais o utópico no topo da minha lista de prioridades, o equilíbrio já tomou o seu lugar. E a consciência, juíza da loucura e da lucidez, faz-se um presente e um escudo contra os desapontamentos do mundo. Corri, guiada pelo vento e tomada pelo frio, até um lugar em que tivesse a certeza absoluta de que estaria sozinha. Olhei para os meus pés, olhei para a noite. Roupa molhada, cabelos grudados na pele, mãos trêmulas. “Seja verdadeira com o mundo e ele será verdadeiro com você”, falava baixinho. A quantidade de pancadas recebidas veio aplaudir a maturidade e era ela que segurava a minha mão ali. Percebi que sou o centro das minhas decisões e é assim que deve ser. Suor, lágrimas, água de chuva. Estava sorrindo.



Sua, S.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

M,

Ouvi falar de um cara que colecionava sorrisos. Demorei a conhecê-lo, mas precisava contar para você. Sei que não te escrevo há muito tempo, mas o assunto demandava uma análise minuciosa antes de ser descrito. Viver primeiro, escrever depois. É assim que deve ser. Às vezes, a gente passa tanto tempo sem se apegar a nada que acaba deixando passar o que merecia ficar um pouco mais perto de nós. De qualquer maneira, sei que não podemos comprar nem parcelar o tempo de acordo com o que nos é conveniente, então digo sem medo que sumi ao tentar adequar o meu tempo ao que reservava para você.

Mas vamos aos fatos: esse cara colecionava sorrisos. Não sei até que ponto ele modelava a lembrança e convertia dentes e bocas em algo concreto e colecionável. Só sei que ele tinha um domínio tão completo sobre os sorrisos que parecia manter cada um deles em uma pequena caixa de cristal exposta em prateleiras dentro da própria cabeça. Passou a fazer da vida uma caçada: conquistaria sorrisos como quem conquista um território desconhecido. A cada item novo, ele ficava mais feliz e mais bonito. Me disse assim, sem pretensão nenhuma, enquanto olhávamos um daqueles rastros de nuvem que os aviões deixam no céu: “Todo dia eu pego o sorriso de alguém, ponho em uma caixinha e guardo na minha coleção”. Nunca questionei seus métodos. Apenas perguntei se ele havia pensado no meu sorriso alguma vez, como um item digno de suas prateleiras preciosas.

Ele disse que o meu sorriso foi o primeiro da coleção.


Saudades,
S.