sábado, 30 de outubro de 2010

M,

Anoitece enquanto escrevo. Não costumo fazer isso, mas hoje, especialmente hoje, resolvi abrir todas as janelas. Tirar poeira dos objetos e organizá-los de modo que a harmonia se estabeleça. É a hora preferida do meu dia, sabe, essa tarde preguiçosa que se despede sem querer ir embora. Sempre gosto de andar pela rua nesse horário, ver as pessoas passando e a vida mudando enquanto a noite cai. A luz me favorece? Talvez. Pensando melhor, o que me atrai de verdade é a sombra que acompanha essa luz. Posso me esconder nela. E observar.

Arrumei o quarto, como disse. Andando descalça num silêncio que me envolve, só pude pensar que prezei pela organização dos meus objetos porque fui incapaz de pôr ordem aos meus pensamentos quando foi necessário. É impossível não pensar que passei da hora. O final feliz passou por mim. Movimentando-se assim, bem aqui, ao meu lado, pegou minha mão enquanto passava. Soltou-a devagar. Acenou. Sorriu. Um sorriso de adeus. E eu aqui, estática, de pés descalços. Pensar nisso dói, ferida recente, parte final de um bolero. O que se pode fazer depois que o fim já passou? E o Para Sempre, que era para ter sido e não foi? Acho que não quis ter despedidas, as atitudes e as palavras nunca conseguem chegar sequer perto do que existe/existiu no âmago. Talvez o problema tenha sido esse. Silêncio. Ninguém nunca falou nada e o ponteiro do tempo continua sempre. Impetuosamente.

Talvez seja hora de começar de novo. Renovar o ciclo. O desejo de harmonia e de organização certamente veio daí. Você desejaria me ver feliz, eu sei que desejaria. Vivi um filme do começo ao fim, sabe. Talvez seja hora de compor um novo roteiro, algo que escape à melancolia dos créditos finais que ainda estão passando. E sei que preciso fazer isso antes que mais tardes como esta caiam. Só não sei se vou conseguir me importar tanto assim novamente. Mas posso desejar que a luz me ajude a ser percebida, que a sombra me ajude a observar...


Com todo o carinho possível de um fim de tarde,
S.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

M,

Escrevo como quem sangra. Acho que pressenti o turbilhão que me acomete agora, uma vez que só consegui dormir na madrugada de ontem depois de ler muito, literatura amarga, triste, sôfrega... Hoje fiz questão de comprar um livro novo numa atitude repentina, sair da livraria à tardinha e ver a noite cair enquanto folheava meu novo companheiro. Acabei de chegar à conclusão de que conquistei uma companhia mais cedo para a solidão que enfrentaria mais tarde. Que bom que pude pensar nisso, que pude pressentir. Até nisso estou ficando melhor: prevejo com perfeição a iminência do vazio. Você adquire a prática com o tempo e a sucessão de eventos similares, não é mesmo? Preparo a sala, o quarto, o corredor, a alma. Limpo os trincos das portas, deixo-os brilhantes. Se é para chegar, que o ambiente seja convidativo. Pois que chegue. Fique o tempo que lhe convier. Tenho até flores. Tenho páginas, poesia, pedestais, purpurina, só não tenho um plural. Comigo é singular, sinfonia, solidez. Um tango de Piazzolla que rasga o chão, a voz rasgada de Maysa em uma canção qualquer que escapa pelas janelas trancadas que aprisionam as estrelas lá fora. Pena que o álcool não me apetece, do contrário, sim, caberia perfeitamente aqui. Quem sabe. Das entrelinhas de outrora, apenas meu silêncio. Quando se dá tudo de si e a reciprocidade (lembra da minha última carta?) é nula, a única atitude possível é soprar o castelo de cartas. Sopro forte, decidido, a plenos pulmões. Se é para destruir, que se destrua direito. A imagem que me vem à cabeça: papéis voando. Milhares, incontáveis, todos brancos. Brancos de indiferença.


S.