sábado, 19 de novembro de 2011

M,

Está chovendo, sabe? A noite de hoje me transportaria para outro lugar e falhou, meus livros me levariam em direção a outras pessoas e também falharam, a música me proporcionaria outros espíritos e emudeceram. Talvez porque todos nós tenhamos certo desejo de materializar o que pertence unicamente ao pensamento, talvez porque o tempo seja uma instância ingovernável, talvez porque nada que seja sentido possa ser completamente externado. Os porquês não importam tanto, só sei que chove. E lembro de quando segurei seu braço na chuva, pensando em me proteger. Como se um contato ínfimo pudesse me salvar de forças climáticas. Mas eu acreditava nisso, sabe, como acreditava cegamente que conseguiríamos atravessar aquela chuva e chegar inteiros ao momento em que ela parasse. Não chegamos. Por falta de poderes, por falta de vontade, por falta de... nós. A gente olha muito pras próprias mãos e esquece que elas deveriam segurar aquelas, que estão bem ali, na iminência de tocar os nossos dedos.

Se encontrar alguém que se disponha a segurar suas mãos, faça o favor de segurá-las.


Sua, S.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

M,

Andei tropeçando tanto em mim mesma que mal tive tempo de escrever. Perdi muito, é verdade, quase parei de estar em mim, é verdade... Mas chega um momento em que presentes cotidianos são dados sem que você perceba. E você passa a acordar por eles. É como emergir de uma piscina infinita depois de um mergulho profundo. Você não imagina como conseguiu ficar embaixo d’água por tanto tempo, só sabe que saiu. Pois é, saí. Agora até consigo sorrir, minhas dores antigas não doem mais. Nunca identificarei com exatidão o instante epifânico libertador, mas contemplo o meu próprio brilho nos olhos e sei que ele se deve, antes de tudo, ao meu ímpeto de alcançar uma felicidade qualquer que deve sua iminência à sucessão de tristezas injustas. A gente sobrevive, sabe. Por nós mesmos. Pela nossa capacidade de contrastar opacidades e transformá-las em cores vivas com algumas pinceladas de sentimento. Depois de tanta perda e de tanta saudade sofrida, os buracos que ficam vão sendo deixados de lado, vão desimportando-se. Nunca desaparecem totalmente, mas se perdem na própria ausência.

Mas, quando existe presença, existe lembrança. As melhores são as congeladas e recentes, que você ressuscita sempre que convém, especialmente antes de dormir. Fotografia em movimento, conjunto de frames em slowmotion, músicas em compassos que obedecem ao ouvinte. Qualquer coisa se torna muito mais vívida na iminência do sono e do sonho. Se sonho com o que foi, é porque desejo que ainda venha. Este quarto escuro, que deveria ser o templo do sonho de uma moça neste exato momento, é palco de memórias que dançam e bruxuleiam ao redor da cama. Das imagens em fogo, da linda proximidade repentina e do sabor azedo da doçura, eu espero o fim da falta. Logo eu, machucada e temerosa, ansiando por uma presença qualquer que me faça reluzir de novo. Ainda guardo a esperança de ter olhos postos em mim, mesmo com as costumeiras dificuldades de falar, de confessar, de distrair, de destoar, de me fazer notar. Mas isso não importa. Voltei a sorrir. E tenho saudades das suas mãos.



Agora, sim, vou dormir.
Sua, S.

domingo, 9 de outubro de 2011

Ei, você. Lembra de quando a gente se viu pela primeira vez? Você tava voltando do colégio, um fim de tarde qualquer de 2ª série dos seus oito anos. Eu tava naquela loja de animais pela qual você sempre passava, sua mãe decidiu parar. Me pechinchou. Fui 5 reais. Você diria, a partir dali, que foram os 5 reais mais bem gastos da sua vida. Ganhei nome de compositor de música clássica, mas naquela época, pra você, era só um filme legal. Te vi aprender violão aos 15 anos, naquelas folhas cheias de mosquitinhos pretos, aí meu nome passou a fazer mais sentido. Parecia coisa que foi feita pra ser. Antes dos seus 15, antes de deitar na capa do seu violão sempre que você tocava e só sair quando a última música acabava, nós dois fomos filhotes juntos. Queria te dizer que eu detestava quando você me colocava naquela cestinha vermelha e saía me arrastando pela casa, mas era legal deixar você brincar de marionete comigo. Enjoamos das bolinhas de papel e das bonecas na mesma época. Você passou a ser meu travesseiro e eu passei a ser seu anjo-guarda-costas. Vi sua mãe sair de casa e não voltar mais, ficava me perguntando onde era que ela tava e quando ia ouvir alguém me chamando daquele jeito engraçado de novo. Só a vi uma vez, muitos anos depois. Você ficou maravilhada quando percebeu que a reconheci. Minha memória é tão boa quanto a sua, mesmo agora.

A casa já não era mais tão cheia, então, eu me orgulhava em ser sua sombra. Em cima dos livros, na porta do banheiro, na hora de dormir, vendo filmes, em frente ao monitor do seu computador, nas caixas de compras, em cima da impressora, nas malas feitas, nos pés da sua cadeira. Miava quando você se aproximava do portão, sem precisar sequer ouvir sua voz. Reconhecia o som dos seus passos e esse som foi ficando cada vez mais familiar, principalmente quando perdi a visão. Saía demais na minha juventude, uma dessas saídas me rendeu problemas nos olhos. Justamente nos olhos, que você se gabava de serem tão azuis. Me perdi de casa um dia, fiquei longe por mais de um mês, passei fome e fui ferido, mas consegui encontrar o caminho e entrei no seu quarto numa madrugada qualquer. Até esqueci a fome que sentia enquanto você me abraçava e chorava, dizendo que achava que nunca mais ia me ver. Lembro de você viajar nas férias e as minhas saídas ficarem mais frequentes quando você não estava em casa. Sua preocupação, estando longe, sempre foi grande. Mesmo tendo seus poucos dez anos, a intensidade com que você me apertava quando voltava de viagem me dizia o quanto você se preocupou. E a minha preocupação era mútua. Quantas vezes fiz vigília do seu lado enquanto esteve doente? Quantas vezes subi na sua cama enquanto você tava agarrada no travesseiro, fiz você olhar pra mim e lambi suas lágrimas? Quantas vezes subi na rede, mesmo sabendo que não devia fazer isso, quando você teve febre ou cólicas ou gripe forte ou qualquer coisa que te impedia de levantar? Quantas vezes fui expulso dessa mesma rede e fiquei deitado embaixo dela, só esperando a oportunidade de subir pra deitar com você de novo?

Cada detalhe desses aconteceu inúmeras vezes e cada uma delas passa diante dos meus olhos parcialmente cegos agora, enquanto você passa a mão pelo meu corpo magro e velho. Só consigo respirar e olhar pra você, não lembro mais como é o seu rosto exatamente, faz muito tempo que só vejo nuvens brancas. Tento lembrar de coisas boas, de você me colocando na janela e ficando lá um tempo comigo, só olhando o céu e as pessoas que passavam na rua. Tento lembrar de como fiz xixi na sua mala pra que você não viajasse ou de como fiz xixi no computador do seu pai quando você passou um final de semana fora. Sei que você busca lembrar disso também. Da minha mania recente de deitar em cima das suas costas (e até da sua bunda!) enquanto você estudava. De como eu me juntava ao seu pai e ia pro seu quarto com ele, porque nós dois tínhamos medo de trovão e você nunca teve. De como vocês enfaixavam minhas patas pra conseguir me levar pra vacinar, eu parecia um gatinho com gesso e me livrava de tudo na metade do caminho, arranhando todo mundo. De todas as vezes que deitei em cima do livro, justamente da parte que você estava lendo. De como eu gostava de chambinho e de milho verde. Do meu jeito de pedir leite, ficando parado na frente da geladeira até alguém resolver me atender. De como eu sempre subia na sua cama depois que você chegava da faculdade, sabendo que você iria ficar ali um tempinho olhando pro teto e abraçada comigo. De como eu sempre acertava o momento exato em que você ia dormir, esperava você apagar as luzes e empurrava você um pouquinho mais pra lá, pra que eu pudesse pegar um pouco do travesseiro ou então me apoiar nas suas pernas.

Nos últimos dias, você ficou doente e eu me senti estranho. Tentei subir na sua rede, como fiz milhares de vezes, mas você sentia muitas dores no corpo inteiro e não me deixaram deitar com você. Foi a última vez que tive forças pra tentar. Em épocas difíceis, fica complicado prestar atenção no gato, principalmente quando ele se esconde debaixo da mesa. Dias depois, quando saí e percebi o quanto você tinha ficado assustada ao ver como eu estava debilitado, fui preparando nossa despedida. Fiquei quietinho na ida ao veterinário, não reclamei dos remédios, não me mexi muito quando você me pôs na rede com você enquanto estudava. Quando cansava e ia pro cômodo vizinho, ficava deitado numa posição que desse pra olhar pra você no seu quarto. Você olhava pra mim e eu estava olhando pra você. Você deixava de olhar e eu continuava olhando. Estávamos nos preparando pro dia mais temido dos últimos 12 anos, mas nenhum de nós queria que chegasse. Ficamos próximos o máximo possível de tempo. Você parecia sentir quando eu não tinha forças pra me levantar e ir até você. Ia me buscar, passar a tarde deitada comigo enquanto lia qualquer coisa. Lutei até o último minuto, tentando caminhar e caindo, gemendo quando você tentava me ajudar e, por fim, me deixando levar pelos seus braços. Agora estou aqui, deitado, olhando pra você enquanto você mexe na minha barriga e dá um beijo na minha cabeça. Cada beijo e cada lambida, desde que éramos só uns filhotinhos, me vem à cabeça e me deixa um pouco mais quentinho nesse frio. Só consigo respirar e olhar pra você. Não consigo dizer o que quero, nem o quanto fui feliz enquanto estivemos juntos, mas consigo olhar fixamente pra você e sei que nada disso precisa ser dito. Minha respiração vai parando, seu rosto vai sumindo, não consigo ver mais nada. Suas lágrimas molham meu corpo enquanto você me aperta e me sacode, seus gritos poderiam me assustar em outros tempos. Mas já não escuto mais nada.

domingo, 11 de setembro de 2011

M,

Analisando causas e efeitos, aqui estou: voltando como quem nunca quis dizer tchau. O fato de o avançar do tempo ser imperceptível não é nenhuma novidade, mas acontece que a gente presta tão pouca atenção no correr dos dias... E de repente acaba parando em si, se achando mais velha, mais densa. Acabei ficando cansada de me carregar em mim. A gente cansa, também, de traçar perspectivas. Se a espera de uma-coisa-qualquer-que-virá é o que nos mantém vivos, como extrair vitalidade de um estado de espírito que nem quer voltar ao que era antes nem faz questão de consertar o que foi quebrado? Não se vive, então. Viver não é preciso. E se da falta de precisão fazem piada, riremos todos. Dançar conforme a música é uma habilidade aprendida dia após dia, lembrança após lembrança. A gente calcula os movimentos para que o cotidiano doa o mínimo possível. É quando se acorda desejando a hora de dormir. De uma coisa eu sei: congelar o tempo pode fazer tanto bem para a memória quanto para o coração. A gente vai aprendendo a sentir os mesmos gostos, a reviver os mesmos abraços, a atender os mesmos telefonemas e a elaborar as mesmas palavras quando a proximidade se torna impossível. Saudade é uma coisa que a gente não controla. Melhor mesmo é se deixar escravizar por ela, já que nem tudo é dor, afinal. Só me recuso a machucados ainda mais pungentes, ninguém é obrigado a passar pelo que não merece. Sabe, sou o tipo de pessoa que elabora uma lista de assuntos para evitar silêncios constrangedores com quem me conquista de alguma forma. Elaborarei essa lista infinitamente. Não porque o silêncio seja infinito, mas porque nunca se sabe quais pessoas estarão dispostas a ouvir minhas palavras pré-estabelecidas.


Um beijo para o primeiro alvo dessa minha lista,

S.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

M,

Vou te contar uma história sem nomes nem fotos. Só pronomes. Assim como nós.



Ela ficava até tarde no escritório. Primeira a chegar, última a sair. Cercada por mesas vazias, lembrava constantemente de quando contava quantas carteiras e quantos cadernos imóveis existiam em salas de aula nos intervalos. Mochilas substituídas por pastas, sorvete no recreio substituído por café nos dez-minutos-entre-reuniões, tempo encostada no muro esperando ônibus substituído por tempo aborrecido enfrentando engarrafamento. É o preço que se paga por crescer. Enquanto interpretava o seu papel de Mulher-Profissional-Bem-Resolvida-e-Independente, espalhando pelo mundo exemplos de profissionalismo e sendo até chata às vezes, quando interrompia um lanche com amigos pra falar de assuntos de trabalho, ela passava pelos dias como quem se desespera pra chegar a um lugar que não se sabe qual é. O desespero, ao longo dos anos, foi atropelando tudo e levando muita gente que não era pra levar. E ela continuava sem saber aonde queria chegar.

Um dia, ela encontrou uma mocinha ruiva que lhe deu um balão. Era vermelho. Sua memória, péssima nas ocasiões mais necessárias, nunca ia lembrar da primeira frase trocada. Ou mesmo da circunstância do encontro. Ela só sabe que aconteceu, o momento do balão, pá, ali.

Quando eu falei que as atitudes dela foram arrastando pessoas pra longe enquanto o tempo corria, deu pra perceber que o resultado disso é ficar só. Havia, é claro, os companheiros de cotidiano, mas eles tinham suas próprias pessoas e suas próprias vidas. Não dava pra incluir mais alguém assim, sem mais nem menos. Não dava pra priorizar. Não dava pra confiar.

– Tira uma foto minha? – A menina disse em algum momento. Ela respondeu que não havia como tirar fotos ali, tinha um compromisso em vinte minutos. A menina deu um sorriso, demonstrando ser indecepcionável. Ela achava que era um sorriso-de-tchau, mas viu que ainda havia uma mão delicada segurando a sua.

Às vezes a gente acha que a companhia de todo dia vai estar ali exclusivamente pra gente quando for preciso, mas quase ninguém faz isso. Talvez porque as pessoas sejam ocupadas demais para se importar tanto assim com as outras. Até porque, todo mundo está querendo chegar a um lugar que não sabe direito qual é. E esse desespero não dá margem a participações externas.

Algumas pessoas nesse mundo conseguem flutuar quando andam. Para perceber que elas flutuam, é preciso alcançar o mesmo nível de leveza. A menina ruiva flutuava. O engraçado disso é que, enquanto estavam juntas, nenhuma das duas parecia tocar o chão.

Ela costumava se divertir, sabe. Tinha as suas farras pessoais, não negava nenhuma oportunidade de desopilar. Rotina driblada com finais de semana vividos do melhor jeito possível. O problema era voltar para casa. O sucesso profissional e as vitórias pessoais acabavam perdendo um pouco o gosto. A gente só é feliz quando compartilha isso com alguém.

Enquanto trocavam palavras quaisquer, ela percebeu que os cabelos da menina na verdade eram uma coroa de cachos vermelhos. Era uma rainha, parada ali na sua frente. E estava ali para salvá-la. Em algum momento, que a memória também roubou parcialmente dela, soube que nunca mais veria a garota ruiva.

Voltou a si, repentinamente, e estava caminhando pela mesma rua. Sentia um cheiro de flores. Uma vontade imensa de ter abraçado a menina enquanto teve oportunidade. Nunca abraçou.

O balão estourou antes que chegasse ao escritório.





Beijos,
S.

terça-feira, 26 de julho de 2011

M,

Algumas coisas ficam mais difíceis durante a madrugada. Talvez devido ao exagerado silêncio dos objetos ou àquela luz pálida da lua, os passos dados em horas altas parecem vir de uma cena em câmera-lenta. O tempo escapa das mãos e escorre por ampulhetas disformes. Enquanto reflexões fluem olhando o trânsito de uma janela e estabelecendo uma calmaria quase meditativa, existe um redemoinho dentro de cada um de nós que ataca com mais violência em tempos silenciosos. Humanos, tigres que somos, fingimos estar no olho do furacão. Falsamente inabaláveis. Falei em tigres porque ninguém pode ser tão nobre quanto um felino ferido e acuado. Escrevo, agora, movida por um estágio de percepção que fica mais aguçado durante a madrugada, talvez porque os outros sentidos – aqueles que nos fazem responder “tudo bem” quando nos perguntam “como vai você?” – fiquem guardados no dia que passou. Se a madrugada é cruel por tornar isso tudo possível, é justamente essa pretensa crueldade que faz dela tão bonita. Ela revigora memórias e burla insensibilidades. De tanto conhecer você, sei o que deve estar pensando agora. E concordo: eu também queria que fosse fácil.


Sua, S.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

M,

Havia luzes. E prédios. E placas. Semáforos verdes e vermelhos aceleravam e congelavam o que estava ao meu redor. Minha cabeça, confusa, estava próxima à janela numa busca incessante por qualquer vento que me balançasse os cabelos. Outros carros passavam por nós, ônibus de trabalhadores cansados e solitários, olhares perdidos em janelinhas (como o meu), luzes fosforescentes no topo de edifícios altos. Todos insones, como eu, como você. Já passava de meia-noite e eu tinha a música comigo. Tinha os fones, passaportes só de ida para um lugar onde a visão, o olfato ou o tato são supérfluos: aquele era o meu mundo. Sabendo disso, de olhos fechados deixei-me despentear. Imagens ruins e boas ziguezagueavam, mas o sorriso ficou perdido no caminho. A noção de tempo me escapava, como em outras ocasiões melhores, e a volta para casa parecia bem mais longa do que deveria ser. Tentava desenhar estas palavras no ar, gravá-las ali. Eu, que não tinha mais forças, ainda tentava lembrar-me deste simples texto, que nem sequer fora escrito até então. Tal dever requer um esforço que parece ter proporções sobre-humanas no momento. Uma musculatura cansada tentava buscar repouso na própria respiração. Inspira, fundo, solta. Devagar. Abri os olhos e as luzes me cegaram, tornei a fechá-los como quem foge do inescapável. Acordes me embalavam no escuro, uma dança suave me fez viajar. O tempo fugiu novamente. Minha priminha, uma pequena flor de cabelos negros e lisos, estava deitada no meu colo. Enquanto mexia nos cabelos dela, percebi uma mudança no comportamento: ela apertava minhas mãos, como quem me chama. Olhei para ela enquanto abaixava o volume da música e

- Você tá chorando?

- Não, florzinha. Tô não. (uma lágrima escapa aqui)

Tentei sorrir, não sei se consegui. Eu e minha dificuldade de admitir. Ah, a sensibilidade das crianças. Enquanto eu fingia que a enganava, ela estava muito mais consciente que eu e me deu um beijinho na mão. Fechei os olhos e de repente me vi criança, deitada no banco de trás de um carro, numa viagem cujo destino não interessa: só as sensações são lembradas. O céu azul com nuvens correndo ao fundo, meu olhar curioso totalmente voltado para cima e para fora, as árvores e os postes ameaçando cair em cima de mim a qualquer momento, sempre que o carro fazia uma curva. Lembro de ter lido isso em um livro, a descrição exata dessa mesma sensação, poderia ter sido escrito para mim. Ou por mim. Mas ali, fora da memória, não havia nuvens e eu já não era mais tão pequena a ponto de caber perfeitamente esticada no banco de trás de um carro. Continuei deixando-me levar pela fluência do que me faltava, viajando por cenas que não mais consigo lembrar ou descrever. Caí no sono.

Mãozinhas infantis me despertavam, enquanto a consciência vinha me dizer que já não havia música. O passaporte perdeu a validade e os fones agora eram silêncio. Havia chegado em casa. Cadeados, portões, interruptores. Agora estas palavras me conduzem. A noite me embala, como quem fecha delicadamente os olhos de um rosto cansado, me dá um beijo e me põe para dormir.


Sua, S.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

M,

Sei que é impossível nos encontrarmos, mas, caso isso acontecesse, você não me reconheceria. Talvez tua amargura contraste com a minha conformidade e a única conclusão a ser feita é a de que não se pode ser a mesma pessoa pra sempre. Ainda sou muito otária, sabe. Ainda tenho vontade de dizer, no maior clima de ano novo, um “foi muito muito muito bom ter te conhecido e não vou esquecer o que andamos vivendo por aí”, mesmo em plenas férias de julho. Não acho que um ano precise acabar pra que tenhamos vontades de falar dos meses bons. Também não acho que abraço nenhum deva ser negado em hipótese nenhuma. Você nega abraços, não é? Por isso não me reconheceria, não me compreenderia. Ou talvez eu te convencesse que abraçar não faz mal algum. A verdade, sobre o tempo e tudo mais, é que o ano ainda está longe de acabar. Falta metade. Sobra falta. Essa mesma falta, que enche meus dias de ausência, tanto me dá suspiros quanto sorrisos. Porque sei que não foi sempre assim. Talvez não seja sempre assim. Ou talvez eu aprenda de vez a ser assim, amarga, e comece a negar abraços também. Mas aí não serei mais eu e a minha parte louca-trôpega-bêbada-heróica vai sumir. E, se foi justamente essa minha parte que me trouxe a sanidade e a maturidade recentemente adquiridas, não faço questão de me despedir dela. Vou continuar abraçando, mesmo que não seja abraçada de volta. E faço isso sorrindo, todos os dias, porque tenho memória e ela está comigo sempre.


Beijos e abraços. Principalmente abraços.
Sua, S.


Ps – já são duas horas da manhã e a lua está linda.

domingo, 1 de maio de 2011

M,

Estava andando ao lado da minha melhor amiga, entramos numa loja de jóias e, no meio de conversas corriqueiras, ela pegou um colar, olhou para mim e disse:

- O pingente é de coração, vou comprá-lo para substituir o meu.


Posso te contar um segredo? Ela é a pessoa mais sábia que eu conheço.

Beijos, S.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

M,

Mais uma folha em branco me encara. Mais um pós-dia de sempre, mais uma noite de cansaço, mais um amanhã por ser escrito. Quando se ativa o piloto automático, a facilidade com que se caminha é infinitamente maior, é quase como falar um idioma com fonemas superficiais ou mesmo evitar falar usando o atalho dos gestos... E se fazer entender mesmo assim. Pré-programação, protocolo certinho que leva sabe-se lá para onde, cálculo meticuloso de números sem que o resultado seja crucial. Romper o protocolo é escrever, é parar para pensar um pouco mais. E o pé atrás, regulador de todas as inseguranças, diz para seguir em frente sem olhar para os lados. Fechar os olhos e esquecer que os braços insistem em querer abraçar. O pé continua atrás, puxando a vida para aquele comodismo parado e lacônico, enquanto as mãos inquietas não sabem se o futuro é digno de esperanças ou não. Enquanto isso, presa no invólucro do não-saber, desafio é encarar a dúvida como sendo um jogo interessante. Desafio é parar de vez em quando para derramar palavras, mesmo sabendo que esse ato simples é provocador de rachaduras em barragens de rios caudalosos. Desafio é jogar comigo mesma sabendo que sempre perdi e, bom, se sempre foi assim, por que dessa vez seria diferente, não é mesmo?

Não espero que você responda essa pergunta final, afinal, não é sua a presença desencadeadora de explosões vocabulares. O que lhe pertence são as ausências e dessas eu já tenho mais que o suficiente.


S.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

M,

Alguém me olhou nos olhos e perguntou: “Deixou de escrever?”

Aqui, espaço propício para tal, digo: Deixei de sentir. Pura verdade, tango radical, por uns tempos foi assim. Até que hoje percebi, em meio à normalidade cinza de sempre, que sou ser de sentir. Escassez de poesia foram esses tempos de música muda, chuva quieta e foco no trabalho. O que não deixa de ser agradável, o ato de escrever por escrever não fez tanta falta assim (Se dissesse que morri de saudades de escrever para você, estaria mentindo. Você sabe que não tenho motivos para ocultar verdades óbvias.) e ultimamente minhas palavras têm sido destinadas a pessoas reais&presentes. Você, ausência pura, deixei para lá. Mas, sim, voltei. Como quem tenta apagar uma página rabiscada com outros rabiscos mais fortes e nervosos, voltei.

Sentimento não me deixa. Sei que não preciso explicar o tipo de paixão que me acomete, sei que não preciso dizer que não é destinada a absolutamente ninguém. Algo não humano, que é abstrato por achar que o real não é merecedor. A mesma paixão que é abastecida pelas literariedades, pelas Buarquices ou pelas sonatas quaisquer. “...o que não é direito ninguém recusar...” E não recusa porque não pertence a ninguém além de mim. Não recusa também porque não existe. Não nego porque existe. Só aqui. Meus livros, meus discos, essa chuva que tá caindo lá fora e minhas páginas em branco sabem. Um sentir-por-sentir qualquer não destinado ao real manifestado apenas num fechar de olhos em meio a uma apresentação de ópera. Frase longa, período truncado, sentidos confusos. A desistência da esperança não significa transformação em insensibilidade, pelo contrário. Agora é abrir os olhos para cada surpresa agradável, para cada manifestação carinhosa, para cada frase marcante de cada livro lido, para cada acorde bem-sucedido em cada música ouvida. Se ultimamente vivi o que não esperava e agi como não esperava (e gostei de ter vivido assim), melhor acrescentar um gosto diferente aos meus dias. O mesmo gosto de quem gosta de ver cada detalhe de maneira própria. Aquele gosto de quem retribui incógnitas com abraços. Sentir é isso. Mesmo sem entender.


Sua,
S.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

M,

Ainda acredito nos papéis amarelados. Aqueles, que se guardam em gavetas e que se enchem de poeira e de tempo. Aqueles, comparáveis às flores murchas, guardiãs de páginas de livros. Eis o que um deles me diz:



Triste, triste
Por tudo o que ainda existe
Por tudo o que já (se) partiu
Desapontamento latente,
Por tudo o que nela reside
Por tudo o que nunca houve
Pelo que nunca foi meu
Palavra que não diz nada
Silêncio que oculta o possível
Choro que conta fraquezas
Mão que contrai um afago
Flores jogadas num lago
Atos que negam perdão
E então o futuro escondido
E então o abraço partido
Os filmes nunca vistos
Músicas nunca cantadas
Valsas nunca dançadas
Cartas nunca escritas
Ela, que nunca foi vista
Ele, que nunca enxergou
Eles, enganos recíprocos
Dançando, assim, sem canções
Culpados, não há, que fazer
Nada saiu dos olhares
Tudo ocultou-se nos bares
Pondo-se os pés pelas mãos
Foi só o momento perdido
Um só que vai aumentando
Os dias, em si, consumindo
E o só, de si, se bastando
Porque nunca quis lhe salvar.


Qualquer palavra depois dessa última quebra o encanto.
Despeço-me por aqui.
Beijos, S.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

M,

(Primeiro parágrafo em Tom Maior)

Começo logo dizendo um desejo: sempre quis ter uma varanda. Seja em uma casa, apartamento, tanto faz. Uma varanda faz-se primordial, elemento tão importante para uma construção quanto os livros são para uma estante vazia. (Uma curiosidade: Sabe que sempre pensei em mim como uma pilha de livros jogados e desorganizados? Confusos. Páginas arrancadas, sem estante.) E, quando falo em construção, digo que ela é um elemento importante não apenas no sentido estrutural da palavra; não me refiro apenas a cimento, areia, ou qualquer dessas materialidades. Varanda é espaço de construção de pensamentos. Se eu tivesse a sorte de morar em um lugar assim, sempre que desse uma festa, faria meus convidados prometerem que os momentos mais bonitos aconteceriam lá. Talvez pusesse placas: “Proibido fazer declarações de amor em qualquer lugar que não seja a varanda.” Seria meu lugar de leituras, de vento dançando nos cabelos, de silêncio, de quietude, de ouvir música baixinho, de namoro ao luar, de deitar na rede e ver o céu. Seria meu lugar.

(Segundo parágrafo em Tom menor)

Ah, meu bem, quisera eu que essas palavras dissessem que estou escrevendo de uma varanda. É madrugada, como sempre, apenas nela as palavras vivem com a intensidade que merecem. Não, não posso ver o céu e não há vento dançando em meus cabelos. Talvez esteja aqui como quem espera num casulo: espero a minha varanda com a mesma esperança de quem tenta descongelar o próprio coração segurando-o com as mãos pequenas e quentes. De repente percebo que meus dedos congelam também. Efeito contrário, tenacidade acentuada, firmeza que não volta atrás. O gelo rouba-me o calor assim como eu roubo lembranças de uma varanda que nunca existiu. Talvez a necessidade desse meu lugar venha do desejo de ver a vida através de qualquer abertura mais ampla que esta janela do meu quarto. Que está fechada, por sinal.


Da enclausurada, porém, sua
S.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

M,

Deixei de te escrever por um tempo e o motivo é um só: estive vivendo. Os dias acumulados resultaram em imagens que passam pela minha mente, em inquietudes que vou aqui mantendo, cultivando, como quem resgata memórias enterradas só para fingir que vive algo no momento. Planto flores de plástico cujo aroma é artificial, cuja vida possui prazo de validade. Dá menos trabalho, sabia? Finjo que as flores são verdadeiras, embora sempre tenha a certeza de que estou enganando a mim mesma. Convivo maravilhosamente bem com isso. Meus dias estão cinzentos e o frio me faz ter aquela felicidade pequena de que me julgo merecedora. Afinal, o que são os nossos dias além de uma eterna dança de cores? Ontem dormi tarde, era azul escuro, demorei a fechar os olhos, o turbilhão de lembranças me atraía e me afogava em dramas nostálgicos nos quais nunca faço questão de pensar. Acontece, meu bem, acontece. Alguém me disse certa vez que Só Existe O Sonho. Palavras jorraram de mim rapidamente, enquanto me embebia em insônia. Não sei se apenas eu encontro um sentido nelas, talvez você já tenha vivido algo parecido e possa se ver em alguma dessas descrições. Talvez nós dois sejamos os personagens em algum tempo passado ou mesmo futuro, vai saber. Talvez a raiz disso tudo seja puramente onírica, quem sou eu para dizer, não é mesmo? Sou apenas o recipiente do que falo, apenas o meio pelo qual as ideias fazem questão de aparecer. Só sei que eu e minhas flores entendemos o que cada uma dessas letras quis dizer em todas as suas nuances. Acontece, meu bem, acontece. São imagens como essas que devemos captar, como um pintor amador que acredita ser imperdoável deixar que um pôr-do-sol morra, sabendo ser crucial salvá-lo em um quadro qualquer, mesmo que aquele sol se ponha todos os dias. Cada pôr-do-sol é diferente, já que as cores são encadeadas de maneiras distintas. Cada palavra é diferente, já que as interpretações ligadas a elas decorrem de inúmeros fatores dependentes unicamente de quem as recebe. Dou-as para ti, então. Te deixo colorir minhas palavras da maneira que te convém.



Imagem estática: Aos olhos dos outros, um casal. Ela estava ali, toda plena, encarando um fim de tarde como outro qualquer em um banco de madeira comum. A plenitude veio do homem deitado em seu colo, a quietude veio do não-saber e do não-se-importar. Estavam, ambos, longe do mundo e de todas as suas regras.

Ela, sentada, olhos fixos, preocupando-se apenas em acariciar os cabelos daquele homem que, naquele momento, era seu e de mais ninguém. Os dedos dançavam com os fios, entrelaçavam-se com firmeza para depois soltarem-se delicadamente. Os movimentos eram meticulosamente calculados, como tudo o que aquela mulher fazia. Enquanto o mundo parava, o único som audível era a respiração forte dele e a única imagem que se fazia notar era a de suas pálpebras fechando-se. Os olhos dele escondiam-se para sorrir. Ela sorria abertamente, sem precisar negar a ninguém a preciosidade daqueles atos, jamais concedidos antes. Ah, eles mal se conheciam, e, no entanto, pareciam tecer exultações silenciosas a cada minuto pela simples ocorrência daquele momento. Horas. A tarde virou noite e o sol dobrou-se em comedidos reflexos sinuosos. Os braços dela dobraram-se, arquearam-se numa tentativa de envolvê-lo. Durante a tentativa, o encontro: mãos. Tímidas. Os dedos, que exploravam a superfície de outra mão desconhecida, pareciam dançar tão livremente quanto com os fios de cabelo.

Que espécie de angústia levara aquelas duas pessoas a encontrarem-se tão repentinamente e a entregarem-se tão sutilmente? O tempo, guardião de todas as respostas, saberia responder. Eles próprios não desejavam respostas, sequer pensavam em perguntas. Qualquer pensamento era inútil diante daquelas mãos que se procuravam com tanta urgência. Ele, libertando-se um pouco da timidez, beijava os dedos dela com o máximo de delicadeza que o momento permitia. Ela ousou um abraço. Aquele homem, que, ao menos naquele momento, era completamente seu, dava todos os sinais de que a busca era mútua e de que continuaria procurando algo inominável através dos tempos, mesmo que o encontro ocorresse em outros braços que não os dela. Sim, ela sabia perfeitamente disso, como mulher forte que fazia questão de ser. Mesmo assim, procurou aquela junção entre o pescoço e o ombro, aquele pedaço de pele onde o cheiro de cada um não pertence a mais ninguém. Ali repousou, fechando os olhos e esquecendo-se do tempo que insistia em levar aquilo para longe.

Não se pode imaginar o que se passava na mente daqueles dois, não se pode saber se eles sequer conseguiam pensar em algo concreto. O instante exato em que tudo ocorreu é impossível de encontrar, assim como a inevitável separação é uma incógnita insolúvel. Ele só sabe da hora em que não havia mais ninguém para acariciar os seus cabelos, para envolvê-lo. Ela só sabe que os seus braços estavam vazios em algum momento posterior, que as suas mãos procuravam abrigo sem encontrar. Não era um casal, nunca houve beijos nem promessas. Amanheceu. Chovia quando ela foi embora.


Sua, S.